Há cerca de 8 anos, fui chefe de um sujeito bem peculiar. Costumávamos chamá-lo de “Solto”. Tinha uns 28 anos e era webdeveloper.
Era usuário de Linux, mas não de qualquer um — tinha que ser o Slackware. Usava um par de headphones enormes, que o ajudavam na sua prática diária de air drumming. Durante o horário de trabalho. Seu estilo estava mais para Keith Moon ou Mitch Mitchell: quando começava a tocar, o prédio todo percebia. Gesticulava e golpeava os pés nos chão com força, fazendo o andar todo tremer.
Cantava em voz alta, enquanto hackeava códigos em PHP. Emocionava-se (quase aos prantos) ouvindo Pink Floyd no último volume. E quando chegava a algum beco sem saída lógico, jogava os fones na mesa, levantava-se bruscamente e saia para fumar.
Enfim: era, digamos… polêmico. Mas quase todos os colegas de trabalho aprenderam a apreciá-lo. Eu também. Em especial, porque era quase religioso em suas convicções morais, em seu senso de justiça e companheirismo. Faria qualquer coisa pelos amigos, certamente.
Mas eu vivia em conflito existencial a respeito do Solto. Achava que ele enrolava para entregar seu trabalho. Várias vezes pensei em demiti-lo. Nunca tive coragem. Por um lado, porque, afinal, eu o admirava como pessoa. Por outro, não conhecia bem a complexidade do código que ele criava.
Hoje, percebo que o cenário era bem outro: o Solto era meu espelho. Eu também era igualmente justiceiro, moralista e um tanto orgulhoso. Assim, não conseguia me comunicar bem com a minha equipe. Achava que era humilhação demais ter que cobrar engajamento. As pessoas nasciam ou não com o gene do comprometimento e da responsabilidade. Na minha cabeça conspiratória da época, todos estavam olhando para o próprio umbigo. Só eu pensava na equipe. Estávamos numa espécie de guerra fria.
Aposto que o Solto projetava algo parecido em mim. Afinal, chegou a me acusar de não me preocupar com os projetos nos quais trabalhávamos juntos. Pudera: eu cobrava nada dele. Quer dizer, nem dele, nem de ninguém. Só perguntava do projeto perto do prazo de entrega. Durante o processo, evitava me meter1.
Vindo de anos de trabalho em editoras indies, com chefes extremamente controladores e folclóricos, eu achava que deveria promover algum tipo de liberdade. Laissez-faire trabalhístico: seja o que você é, faça o que quiser — confio em você. Mas, na verdade, isso não era confiança. Era o contrário. Eu evitava “sujar as mãos”. Fugia dos conflitos até o último segundo, por não acreditar que a equipe tinha suficiente liga para passar por certos estresses cotidianos.
Mas, enfim.
Por que estou contando essa história? Porque acabei de ler mais uma sequência gigante de textos sobre novas ferramentas de produtividade para Front-End e developers. E, estranhamente, me senti de volta aos anos 2000, na época da febre da “produtividade pessoal”, do GTD, do (hoje cansado) lifehacking.
No limite, coisas como Grunt, Gulp, frameworks, Scrum, técnicas de padronização etc. — até mesmo o Git — podem servir como excelentes ferramentas de procrastinação, de autoengano coletivo. São excelentes tecnologias. Mas também podemos usá-las para evitar enfrentar o principal problema que envolve trabalhar em equipe: lidar com os egossistemas.
Explico. Diariamente, cada um de nós cria um sistema de projeções e narrativas mentais nos quais tende a se enquadrar, juntamente com os colegas de trabalho. Usamos qualquer coisa à mão para consolidar essas histórias e lhes conferir continuidade.
Por exemplo: provavelmente, na sua equipe, deve haver alguém que crie sua identidade em torno de buscar novas técnicas de programação. Ele deve gostar de acreditar que é um expert nos sistemas mais complexos criados na madrugada passada. Deve ir a todas as conferências, ler todas as newsletters. Todo o resto da humanidade precisa ser urgentemente atualizada. Alguém está errado na internet.
Também há quem manifeste o problema oposto, desconfiando de todas as novidades. Fazendo bullying de tudo o que não é tradicional, testado e que funcione no IE7.
Pense nesses dois tipos de egossistemas trabalhando numa mesma equipe. Ou, em conflito, numa mesma cabeça.
Aí está um item que nunca consideramos nas nossas planilhas de custos: quanto tempo gastamos gerenciando egossistemas. Em especial, o nosso próprio.
Imagine o que aconteceria se houvesse um modo de taxar o estresse de trabalhar com certas personalidades: “um projeto com um megalomaníaco custa 30% a mais”, “com um colega inseguro e, por isso, demasiadamente industrioso, 50% de desconto”.
Você duvida que isso será possível um dia? Vai ser meio caro viver nesse mundo.